A indenização da vítima no juízo cível com base em sentença penal condenatória transitada em julgado

LUIZ GUSTAVO LOVATO, MSc.
Advogado e professor de Cursos de
Graduação e Pós-graduação em Direito

INTRODUÇÃO – 1. CRITÉRIO PARA A FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA NO PROCESSO JUDICIAL – 1.1 COMPETÊNCIA ABSOLUTA E RELATIVA – 1.2 A COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA – 2. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO CRIMINOSO – 3. AÇÕES PENAIS – 4. O INQUÉRITO POLICIAL E A PARTICIPAÇÃO DA VÍTIMA – 5. A DENÚNCIA – 6. EFEITO EXTRAPENAL DA SENTENÇA PROFERIDA PELO JUÍZO CRIMINAL – 7. A CONDENAÇÃO DE MATÉRIA CIVIL NA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA – 8. A INEFICÁCIA DO ART. 387, IV DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL EM FACE DAS ATUAIS INTERPRETAÇÕES DOS TRIBUNAIS E NOTAS CONCLUSIVAS

RESUMO
O processo criminal tem por escopo principal a punição do agente que pratica um crime. Por punição a lei prevê a privação de liberdade, a restrição de direitos e a multa, todos cumpridos perante o Estado. A reparação ou
compensação do dano sofrido pela vítima é um efeito secundário da condenação penal, que lhe permite não mais discutir esse direito, mas executar diretamente o seu crédito em face do condenado. A participação da vítima do
processo criminal, porém, é mínima, resumindo-se ao depoimento. Ela não tem espaço para requerer a condenação do réu a lhe indenizar e, menos ainda, produzir provas relacionadas à extensão do dano sofrido. Com base nesses
problemas, a execução direta da sentença penal condenatória transitada em julgado, sem a necessidade de liquidação prévia no cível, torna-se cada vez mais difícil de ser realizada. Quiçá impossível.

ABSTRACT
The prosecution has the main scope of the punishment agent who practices a crime. For punishment the law provides for the deprivation of liberty, the restriction of rights and fines, all completed before the state. Repair or compensation for the harm suffered by the victim is a side effect of criminal conviction, which allows you to no longer discuss this right, but directly run your credit in the face of the condemned. The participation of victims in criminal
proceedings, however, is minimal, summing up the testimony. She has no room to apply the sentencing of the defendant to indemnify him and even fewer produce evidence relating to the extent of the damage. Based on these
problems, the direct execution of the criminal sentence has become final without the need for prior settlement in civil court, it becomes increasingly difficult to achieve. Perhaps impossible.


Keywords: liability, damages, penal sentence

INTRODUÇÃO

O Poder Judiciário, representante da essência do Poder do Estado no
que tange à possibilidade de proferir decisões impositivas e definitivas em face
do jurisdicionado, vive, nos dias atuais, uma notória crise de eficácia. A busca
pelo bem da vida, máxima do Direito Processual, torna-se uma tarefa muita
vezes inglória, fulminada pela ineficiência dos meios processuais atrelada à
má-fé daqueles que veem nesta uma porta para a irresponsabilidade.
Se a autotutela é tipificada como crime, denominada exercício arbitrário
das próprias razões de direito no art. 345 do Código Penal (CP), ou abuso de
poder no art. 350 do mesmo diploma legal, a busca pela tutela jurisdicional
torna-se não apenas um dever e um direito fundamental do cidadão, mas,
principalmente, um dever de garantia por parte do Estado. As contendas
devem ser resolvidas a fim de se buscar a paz e a harmonia sociais, mesmo
que de forma impositiva.
O direito de ação está previsto no art. 5º. da Constituição da República
Federativa do Brasil (CRFB), em seus incisos XXXIV e XXXV, mas não
constitui um pilar de sustentação solitário do Estado Democrático de Direito.
Principalmente nos dias atuais, em que as concepções de um Estado Liberal
se encontram cada vez mais distantes da realidade brasileira. O Estado Liberal
não foi recepcionado pela CRFB, mas continua presente na obsoleta norma
processual vigente, em conjunto com interpretações desconexas dos tribunais
pátrios.
O direito fundamental do cidadão não vale de per si. Ele sobrevive em
um contexto coletivo que se justifica pelo atual modelo de Estado Social e seu
tão pouco lembrado art. 6º da CRFB, que estabelece, de maneira inequívoca,
serem “direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e
à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Como preza a norma constitucional, se tratam de comandos abertos,
passíveis de interpretação. Afinal, a assistência aos desamparados significa
que não apenas aquele que não tem condições de se autogovernar merece
assistência, mas aquele que depende da tutela do Estado para conferir a si o
postulado normativo da dignidade da pessoa humana também.
Nesse sentido, Paulo Bonavides diz que o atual modelo de Estado
Social cria uma situação de dependência do indivíduo em relação às
prestações do Estado, fazendo com que este “cumpra a tarefa igualitária e
distributivista, sem a qual não haverá democracia nem liberdade”1. A
“igualdade niveladora”, preconizada pelo autor, prevê a isonomia material como
pilar da pacificação social, tratando desigualmente os desiguais e, mais,
atuando “mediante intervenções de retificação na ordem social a remover as
mais profundas e perturbadoras injustiças sociais”2.
Esses direitos sociais definem a necessidade de o Estado prestar ações
afirmativas, desvinculadas do pleito clássico que exige petição inicial para que
exista processo, e pedido para que exista tutela3. O pedido, então formulado
pelo titular do direito, somente pode ser realizado pelo próprio titular ou por
quem tenha poderes de representação em caráter extraordinário, como o
Ministério Público, por exemplo.
Tanto o é que, mesmo em casos especiais de incapaz, réu preso ou
revel, cabe o magistrado a nomeação de curador especial para administrar
seus interesses, sob pena de nulidade do processo4. A atuação do Ministério
Público na defesa de interesses privados encontra limitações mesmo em casos
de intervenção ministerial obrigatória.
Já entendeu o Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, havendo no
processo a disputa de interesses exclusivamente privados das partes, esses
não configuram interesse público e, mesmo tratando-se de enquadramento na
expressa norma processual que prevê a obrigatoriedade da intervenção
1
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. 2. tiragem. São Paulo:
Malheiros, 2003, pp. 378/9.
2
ibidem.
3
O princípio da inércia ou demanda, previsto no art. 2º do Código de Processo Civil (CPC) faz
coro com a congruência dos arts. 128 e 460 do mesmo diploma legal, definindo a necessidade
de não apenas a peça vestibular mas, especificamente, o pedido para que haja a prestação da
tutela jurisdicional.
4
Cf. art. 9º do CPC.
ministerial quando a lide envolver direitos de incapazes5, a declaração da
nulidade absoluta do processo depende da prova do prejuízo das partes, a ser
realizada pelo próprio MP6.
Assim, se o MP pleitear a nulidade de um processo sob a alegação de
que sua intervenção obrigatória não fora respeitada em face da existência de
incapazes em um dos polos da demanda, deverá ele – o MP – provar que sua
ausência trouxe prejuízo ao incapaz. Ou o processo não padecerá de nulidade,
mesmo havendo cominação legal expressa prevendo-a.
No relatório do voto em questão, cinge-se o argumento que autoriza o
julgado nessa parte (in verbis):
3. Quanto ao segundo argumento, no tocante à nulidade do acórdão
no pertinente à não intervenção do Ministério Público para fins de
preservação de interesse de incapaz, a jurisprudência desta Corte já
assentou entendimento no sentido de que a ausência de intimação do
Ministério Público, por si só, não enseja a decretação de nulidade do
julgado, a não ser que se demonstre o efetivo prejuízo para as partes
ou para a apuração da verdade substancial da controvérsia jurídica, à
luz do princípio pas de nullités sans grief. Até mesmo nas hipóteses
em que a intervenção do Parquet é obrigatória, como no presente
caso em que envolve interesse de incapaz, seria necessária a
demonstração de prejuízo deste para que se reconheça a nulidade
processual. (Precedentes: REsp 1.010.521/PE, Rel. Min. Sidnei
Beneti, Terceira Turma, julgado em 26.10.2010, DJe 9.11.2010; REsp
814.479/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma,
julgado em 2.12.2010, DJe 14.12.2010).
4. Na espécie, o Ministério Público não demonstrou ou mesmo
aventou a ocorrência de algum prejuízo que legitimasse sua
intervenção. Ao revés, simplesmente pretende, por intermédio do
recurso especial, delimitar absoluto interesse interveniente sem que
indique fato ou dado concreto ou mesmo hipotético que sustente tal
legitimidade. O prejuízo aqui tratado não pode ser presumido; precisa
ser efetivamente demonstrado, o que não se deu no caso dos autos.
O Ministério Público tem sua atuação cada vez mais adequada à
preservação dos interesses metaindividuais ou transindividuais, não lhe
cabendo, seja por questão de legitimidade ou estrutura, intervir em todas as
5
Cf. art. 82, I do CPC.
6
REsp 818978. STJ, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 18.11.2011.
contendas que tratem de interesses privados. Mesmo que envolvam incapazes.
Assim já preconiza o caput do art. 1º. da Lei Orgânica do Ministério Público7.
Os interesses individuais podem estar relacionados com outros iguais,
homogêneos, e possuírem um caráter metaindividual, quando decorrerem de
uma origem comum8. Mas, para que legitimem o MP a atuar representando os
interessados, deverão ser protagonizados em ações de caráter coletivo, como
a Ação Civil Pública, por exemplo.
Some-se as máximas apresentadas às regras gerais de competência e
tem-se, com a redação do inciso IV do art. 387 do Código de Processo Penal,
uma exceção à regra de que a competência em razão da matéria será sempre
de caráter absoluto. Isso porque a norma em questão autoriza o juiz criminal a,
na sentença penal condenatória, fixar “valor mínimo para reparação dos danos
causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”9.
É, inquestionavelmente, matéria de caráter civil resolvida pelo juízo
criminal, quebrando todas as definições e critérios para a fixação da
competência previstas no modelo original adotado pelo sistema processual
brasileiro.
E é justamente nessa questão relacionada à matéria que surge o maior
problema do art. 387, IV do CPP: que tem legitimidade para pleitear a verba
indenizatória prevista no artigo? O Ministério Público ou a própria vítima? A
seguir, serão tratados alguns elementos para a reflexão acerca do tema.
A ótica do texto, apesar de transdisciplinar, será a do Processo Civil,
utilizando-se a sentença penal condenatória e seus efeitos extrapenais, como
substrato para a execução civil que visa reparar o dano sofrido pela vítima do
crime.
7
Lei nº. 8.625/93: “Art. 1º O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e
dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”
8
Cf. art. 81, III do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
9
Redação dada pela Lei nº. 11.719/08.
1 CRITÉRIOS PARA A FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA NO PROCESSO
JUDICIAL
A competência é a aptidão legal para a prática de atos jurisdicionais
válidos. É aptidão legal porque está definida em lei. Mesmo quando é possível
às partes elegerem o foro competente em contrato, elas não poderão jamais
eleger o juiz, sob pena de violação ao princípio do juiz natural. É a lei que
estabelece o juízo competente para processar e julgar as causas levadas ao
Poder Judiciário.
Competência também é pressuposto processual de validade. Enquanto
jurisdição é pressuposto de existência, ou seja, somente haverá processo
judicial quando processado perante órgão investido de jurisdição, esse
processo somente terá validade quando processado e julgado por órgão
jurisdicional competente.
Nesse sentido, Carnelutti conceitua competência como a distribuição do
trabalho entre os diversos ofícios judiciais ou entre seus diversos componentes,
como requisito de validade do ato processual em que a potestade encontra seu
desenvolvimento10. É importante salientar que mesmo o ato processual
praticado por órgão jurisdicional absolutamente incompetente é capaz de
produzir efeitos e, portanto, ser considerado válido11.
A competência é atribuída por lei ao órgão judicial, é decorrência direta
do princípio da legalidade12. “A lei processual civil atribui competência aos
juízes valendo-se de diferentes ‘dados’, relacionados principalmente com a
própria lide ou com as pessoas litigantes.”13 Se não estiver definida em lei, a
competência não existe. Assim, pode existir jurisdição sem competência, mas
jamais poderá existir competência sem jurisdição, já que esta pressupõe
aquela.
A competência, definida em lei, é classificada consoante critérios.
Chiovenda estabeleceu esses critérios que são necessários para a
10
Cf. CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil, v. 1. Campinas: Servanda,
1999, p. 256.
11
A exemplo do disposto no art. 219 do CPC, fine.
12
Cf. PIZZOL, Patrícia Miranda. A competência no Processo Civil, p. 122.
13
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência, p. 68.
determinação e a classificação da competência, uma vez que os limites da
aptidão jurisdicional são prorrogáveis (ou relativos ou dispositivos) ou
improrrogáveis (absolutos, necessários), conforme se exijam ou não que sejam
observados, e se deixem ou não ao alvedrio das partes14. Os critérios de
classificação de Chiovenda são utilizados até os dias atuais, e são:
a) Critério objetivo: “ou do valor da causa (competência por valor) ou da
natureza da causa (competência por matéria)”15.
O critério objetivo é definido em face da legislação que prevê os casos
concretos; que prevê a competência em razão da causa apreciada, seja em
razão do seu valor, seja em razão da sua matéria, levando em conta a
organização do Poder Judiciário. Não leva em consideração, ao menos
primordialmente, a condição especial do órgão julgador, como ocorre com o
critério funcional. “O critério objetivo é critério de distribuição das causas entre
tribunais de tipo diferente.”16
b) Critério funcional: “extrái-se da natureza especial e das exigências
especiais das funções que se chama o magistrado a exercer num processo.”17
Pizzol, sobre o tema, diz que os órgãos jurisdicionais têm sua competência
atribuída por lei em vários níveis jurídico-positivos: “Constituição Federal
(competência de jurisdição e competência hierárquica dos tribunais superiores);
Constituições estaduais (competência originária dos tribunais locais); leis
federais (competência territorial) e leis de organização judiciária (competência
de juízo e competência interna).”18
O critério funcional leva em conta, para a determinação da competência,
a função exercida por cada órgão jurisdicional, consoante o estabelecido,
primordialmente, na Constituição Federal e, subsequentemente, nas
Constituições Estaduais e demais legislações ordinárias. Como o Brasil é um
14
Cf. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, v. 2: as relações
processuais; a relação processual ordinária de cognição. Trad. da 2. ed. italiana por J.
Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1943, p. 216.
15
Idem, p. 214 (grifo do autor).
16
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, v. 2, p. 215.
17
Idem, p. 214 (grifo do autor).
18
A competência no Processo Civil, p. 122-3.
Estado estabelecido sob um pacto federativo19, a hierarquia legal impede a
autonomia plena dos entes federados, que devem legislar sempre em
consonância com a Constituição Federal. Para manter essa estrutura,
incluindo-se o ordenamento jurídico, a organização das funções jurisdicionais
se faz necessária; delimitando-se competências especiais consoante as
atribuições próprias de cada órgão julgador, ou seja, somente aquele órgão é
capaz de julgar aquela espécie de causa. “O critério funcional é critério de
distribuição das causas tanto entre tribunais do mesmo tipo, quanto de tipo
diferente.”20
c) Critério territorial: sobre esse critério de classificação da competência,
Chiovenda diz que “as várias causas da mesma natureza são designadas a
juizes do mesmo tipo, com séde, entretanto, em lugares diversos […]”21. Para
que seja estabelecida a comarca competente para julgar determinada causa,
ou o território em que será apreciada a demanda, “a designação depende de
circunstâncias várias, ou do fato de residir o réu em determinado lugar (forum
domicilii, forum rei), ou de haver-se contraído a obrigação em dado lugar (forum
contractus), ou de achar-se em dado lugar o objeto da lide (forum rei sitae).”22
O território competente para o julgamento de determinados casos pode
ter como origem o interesse público ou a livre convenção das partes,
dependendo do caso. “O critério territorial é critério de distribuição das causas
entre tribunais do mesmo tipo.”23
Pizzol diz que, “com relação aos critérios, é importante salientar que eles
são concorrentes e não excludentes: ‘[…] não se trata de critérios que se
excluam uns aos outros. Todos eles concorrem para a determinação da
competência de um órgão judicial’.”24 Aos critérios de Chiovenda, para a
classificação da competência, Carneiro acrescenta aqueles que definem a
competência como: plena ou cumulativa (quando, em uma comarca, existe
19
CF – “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: […]”
20
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, v. 2, p. 215.
21
Idem, p. 214 (grifo do autor).
22
Idem, pp. 214-5 (grifo do autor).
23
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, v. 2, p. 215.
24
A competência no Processo Civil, pp. 144-5.
somente uma vara, e esta é competente para o julgamento de todas as causas
nela propostas); privativa (quando a lei atribui ao órgão julgador o
conhecimento apenas de determinadas causas, quer em razão da matéria,
quer em razão do valor); comum ou residual (podem ser exclusivas ou
concorrentes, consoante possam ou não ser eleitas pelo autor da ação);
originária e recursal (consoante a instância)25. Esse trabalho ficará restrito às
classificações de competência mais abrangentes.
1.1 COMPETÊNCIA ABSOLUTA E RELATIVA
A primeira classificação da competência ora abordada será aquela que
leva em consideração o interesse (público ou da parte) e a possibilidade ou não
de eleição de foro, prorrogação ou modificação da competência. São os
gêneros da competência segundo os quais todas as demais classificações
serão determinadas.
A administração da justiça é interesse público. A escolha do órgão
julgador pelas partes por meio de eleição prévia somente poderá ocorrer nos
casos em que a lei possibilite, sem existir, contudo, residualidade em relação
aos demais casos, ou seja, não se excluem critérios de classificação da
competência para se determinar a possibilidade de escolha dos outros. Mas o
legislador deu certa margem ao autor da demanda para escolher o foro, ou
para as partes de um negócio jurídico elegerem o órgão jurisdicional que irá
dirimir eventuais conflitos resultantes do acordo ou contrato.
A competência absoluta é aquela determinada pelo interesse público,
resultante de norma cogente que vincula obrigatoriamente as partes e o órgão
jurisdicional. Não está sujeita aos critérios de modificação ou prorrogação de
competência, o que significa dizer que ou o juízo é absolutamente competente,
ou absolutamente incompetente.
25
Cf. Jurisdição e competência, pp. 116-9.
A competência relativa, por sua vez, é determinada pela lei, porém com
certa flexibilidade, pois pode ser eleita pelas partes anteriormente à propositura
da demanda e pode ser prorrogada; enfim, é passível de se adequar à
comodidade das partes ou a acontecimentos supervenientes à propositura da
ação, como a conexão ou a continência, por exemplo26.
A incompetência relativa deverá ser sempre suscitada pela parte por
meio de exceção27, não podendo, sob hipótese alguma, ser declarada de ofício
pelo juízo28, exceto se necessária a declaração de nulidade da cláusula de
eleição de foro em contrato de adesão. Nesse caso, porém, a manifestação do
órgão jurisdiconal ocorre em face do contrato leonino, abusivo, e não em face
da declaração de incompetência, especificamente. A incompetência torna-se,
nesses casos, uma consequência do ato jurisdicional, e não o objeto do próprio
ato29.
Dois critérios, portanto, são predominantes na classificação da
competência em absoluta ou relativa: o interesse (público ou das partes) e a
possibilidade, ou não, da sua modificação (como ocorre na prorrogação e na
reunião dos processos por conexão ou continência).
1.2 A COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Após a classificação da competência em absoluta e relativa, que é a
classificação mais abrangente e, portanto, parâmetro para as demais
classificações, é importante a apresentação da classificação que utiliza a
matéria para a definição da competência. O critério leva em consideração o
direito material posto em causa, se cível, penal ou trabalhista.
26
CPC – “Art. 102. A competência, em razão do valor e do território, poderá modificar-se pela
conexão ou continência, observado o disposto nos artigos seguintes.”
27
CPC – “Art. 112. Argúi-se, por meio de exceção, a incompetência relativa. Parágrafo único. A
nulidade da cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, pode ser declarada de ofício
pelo juiz, que declinará de competência para o juízo de domicílio do réu.”
28
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.Súmula 33: A incompetência relativa não pode ser
declarada de ofício.
29
Cf. art. 112, parágrafo único do CPC.
Chiovenda denomina essa classificação como “competência
determinada pela natureza da causa”30, pois “é determinada de acordo com o
pedido formulado pelo autor (que é qualificado pela causa de pedir).”31 É a
matéria em litígio (isto é, a natureza do direito material controvertido) que
servirá, inicialmente, para determinar a competência civil esfera constitucional,
atribuindo a causa à Justiça Federal ou à Justiça local32.
Passada essa fase, o órgão judicante competente será determinado
consoante o critério territorial, sendo possível, dentro do mesmo foro, a
subdivisão de varas especializadas (por exemplo: varas de família, do Tribunal
do Júri, de falência, de direito bancário, etc.). No mesmo sentido, Carneiro diz
que “no âmbito da Justiça comum e em primeiro grau de jurisdição, são
criadas, em comarcas de intenso movimento forense, varas privativas em razão
da matéria, em face das vantagens de uma maior especialização dos juízos.”33
A competência em razão da matéria é absoluta e, portanto, indisponível
e improrrogável.34 Também a Constituição Federal, as Constituições Estaduais,
as leis federais e as leis de organização judiciária fazem remissão à
competência em razão da matéria.
Porém o legislador, ao criar a redação do inciso IV do art. 387 do CPC,
através da Lei nº. 11.719/08, acrescentou uma flexibilização a este critério de
classificação de competência. Ao juízo criminal é permitido julgar matéria civil,
relacionada à indenização sofrida pela vítima do fato criminoso, a qual
consistirá em “valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração,
considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”.
Não se duvida da capacidade do juiz criminal em proferir sentença que
traga tal matéria não usual à sua praxe. O problema surge no processamento
da causa, pois o processo crime se presta, primordialmente, para a apuração
da materialidade e da autoria dos crimes, e não da extensão dos danos
indenizáveis sofridos pela vítima.
30
Cf. Instituições de Direito Processual Civil, v. 2, p. 247.
31
PIZZOL, Patrícia Miranda. A competência no Processo Civil, p. 213.
32
Cf. art. 109 da CRFB
33
Jurisdição e competência, p. 237 (grifo do autor).
34
Cf. CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência, p. 238; PIZZOL, Patrícia
Miranda. A competência no Processo Civil, p. 213.
2. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO CRIMINOSO
O direito civil brasileiro, através da responsabilidade civil, trata da
reparação do dano causada por ato ilícito35. O agente que pratica um ato ilícito
de ordem civil fica obrigado a reparar o dano causado, desde que presentes a
conduta, o nexo causal e o dano propriamente dito, que poderá ser de ordem
material ou moral36.
Responsabilidade é substantivo derivado de responder; responder pelo
ato praticado. Porém, é de se frisar que o ato ilícito civil tem um viés diferente
do penal e, exatamente por isso, “a responsabilidade civil é independente da
criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre
quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo
criminal”37.
Com base em tal premissa legal, o ilícito civil pode ser uma
consequência do ilícito penal ou não. Será ato ilícito civil puro quando a
conduta for capaz de causar dano a outrem, seja por ato comissivo, omissivo
ou por abuso de direito38. Será ato ilícito derivado do crime quando a conduta
constituir fato típico, antijurídico e culpável, deixando resultados de ordem
material ou não.
Existem, assim, crimes formais, que não deixam resultados materiais.
Mas podem resultar em dano moral, como nos casos de crimes de
concussão39. E existem crimes materiais, que deixam resultados materiais e,
dentre eles, o dano material da vítima pode estar enquadrado no resultado,
como, por exemplo, o furto40.
35
Cf. art. 927 do CC.
36
Sobre o dano moral, a CRFB trouxe expresso o dever de repará-lo no art. 5º, V e X.
37
Art. 932 do CC, verbis.
38
Cf. arts. 186 e 187 do CC.
39
CP – Art. 316 – Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da
função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa.
40
CP – Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Nesses casos, o crime pode ser apurado junto ao juízo criminal
enquanto, simultaneamente, a indenização da vítima é apurada junto ao juízo
cível. Nesses casos de tramitação simultânea dos processos cível e criminal
relativos ao mesmo fato ilícito, é faculdade do juiz cível sobrestar o processo
até que o juízo criminal apure a materialidade e autoria. Assim, evita-se a
contradição de julgados, cabendo ao cível acatar o decidido pelo crime. Mas,
caso o processo criminal não seja instaurado em 30 dias do sobrestamento, o
juízo cível dará continuidade ao processo41.
No processo criminal, tanto a sentença condenatória como a absolutória
podem reconhecer a materialidade e autoria do crime, pois o réu responde
perante o Estado e poderá ser reconhecida a existência de alguma excludente
de ilicitude ou, mesmo, causa extintiva de punibilidade.
Transitada em julgado a sentença penal condenatória, não se admite
no juízo cível a rediscussão da responsabilidade pelo ato ilícito.
Portanto, não é viável a rediscussão da culpa ou do nexo causal,
limitando-se a cognição judicial a aspectos da própria execução ou ao
valor do dano a ser ressarcido.42
A sentença penal condenatória transitada em julgado constitui título
executivo judicial que habilita a vítima a executá-la junto ao juízo cível,
buscando, assim, a reparação pelo dano sofrido com o crime43. Conforme a
modalidade de ação penal, a participação da vítima pode ser maior ou menor.
3 AÇÕES PENAIS
A ação penal visa apurar fato criminoso e, em consequência, a aplicação
da pena ao condenado. Existe uma preocupação especial no Direito Penal com
a ressocialização do criminoso condenado, o que o difere em especial do
Direito Civil, que busca a reparação do dano sofrido pela vítima. Nesse sentido,
dependendo da modalidade de crime praticado, a participação da vítima no
41
Cf. art. 110 do CPC.
42
MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHARDT, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil –
Execução. 2. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 415.
43
Cf. art. 475-N, II do CPC.
processo criminal pode passar de um simples elemento de prova à própria
legitimada para a sua propositura.
As ações penais públicas incondicionadas constituem a regra geral. As
ações penais privadas e as ações penais públicas condicionadas, as exceções
que devem estar previstas em lei44. As ações penais públicas incondicionadas
têm como peça inaugural a denúncia promovida pelo Ministério Público, ao
passo que a condicionada depende de representação do ofendido ou
requisição do Ministro da Justiça. As ações penais privadas se processam
mediante queixa-crime do ofendido.
Constituem princípios informadores da ação penal pública
incondicionada:
1) Oficialidade – o Ministério Público é o órgão incumbido de
promover a ação penal, devendo fazê-lo de ofício, ou seja, por
iniciativa própria.
2) Indisponibilidade – O Ministério Público, como titular da ação
penal, poderá intentá-la e acompanhá-la em todos os seus trâmites
legais. Não poderá, entretanto, dela dispor, declinando do seu
exercício, transigindo, desistindo e acordando.
3) Obrigatoriedade ou legalidade – o Ministério Público, presentes os
elementos que autorizam a propositura da ação penal, deverá fazê-lo
[…] de forma totalmente independente, sem sofrer qualquer
ingerência [de outros poderes do Estado ou privados].
4) Indivisibilidade – […] o Ministério Público haverá de proceder contra
todos os autores e partícipes da infração criminal.45
As ações penais privadas, por sua vez, são disponíveis, pois constituem
crimes que não configuram interesse público, mas, somente, da vítima. Pode
ela, portanto, desistir da ação penal ou mesmo transigir conforme a sua
conveniência. Pode-se considerar, inclusive, o perdão do ofendido, que tem o
condão de obstar a propositura da queixa-crime46.
A ação penal se baseia, especialmente, nas provas coletadas através de
Inquérito Policial, que servem como base para a descrição do fato criminoso,
do qual o réu irá se defender no processo.
44
Cf. art. 100, caput do CP.
45
COSTA Jr.. Paulo José da. Curso de Direito Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, pp.
261-2.
46
Art. 105 do CP.
4 O INQUÉRITO POLICIAL E A PARTICIPAÇÃO DA VÍTIMA
No Inquérito Policial as provas que embasarão a denúncia ou a queixa
serão apuradas através de perícia técnica ou oitiva de depoentes. O ofendido
poderá requerer qualquer diligência à autoridade policial através do juiz
criminal, o que demonstra, de per si, a ausência de disponibilidade da ação
penal à vítima, nesses casos47.
Em um conceito mais específico, o Inquérito Policial
é o conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a
apuração de uma infração penal e de sua autoria, a fim de que o
titular da ação penal possa ingressar em juízo (CPP, art. 4º). Trata-se
de procedimento persecutório de caráter administrativo instaurado
pela autoridade policial. Tem como destinatários imediatos o
Ministério Público, titula exclusivo da ação penal pública (CF, art. 129,
I), e o ofendido, titular da ação penal privada (CPP, art. 30); como
destinatário mediato tem o juiz, que se utilizará dos elementos de
informação nele constantes, para o recebimento da peça inicial e para
a formação de seu convencimento quanto à necessidade de
decretação de medidas cautelares.48
É, portanto, de caráter administrativo, o que faz com que as provas nele
produzidas devam ser judicializadas, ratificadas ou reproduzidas pelo juízo
criminal. O juízo criminal, então, realizará as determinações concernentes à
matéria criminal, não lhe cabendo, por força da competência, mandar à
autoridade policial que proceda à apuração da extensão do dano sofrido pela
vítima, exceto se esta estiver direta e imediatamente ligada à materialidade do
crime.
5 A DENÚNCIA
47
Art. 12 e ss. do CPP.
48
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 64.
Consoante já exposto, a denúncia, oferecida pelo Ministério Público,
constitui a peça inaugural da ação penal pública. Nela, o Ministério Público
representa o Estado, o interesse público, a coletividade atingida pela ação
criminosa. Busca, assim, a harmonização da sociedade através da aplicação
da pena ao criminoso. Como expresso no art. 127 da CRFB, a “defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis”
Os elementos da denúncia, que a compõem, são um reflexo dessa
máxima, como dispõe o art. 41 do CPP: “A denúncia ou queixa conterá a
exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a
qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-
lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”
As circunstâncias do fato criminoso, expostas na denúncia, dizem
respeito à causalidade, aos elementos que compõem o cenário do crime, e não
aos danos sofridos pela vítima. Como dito anteriormente, estes podem muito
bem estar enquadrados na materialidade do crime, mas podem, por vezes, ser
muito mais abrangentes, constituindo lucros cessantes, perda de uma chance
ou toda e qualquer modalidade de danos que se prolongam no tempo, indo
além do momento do crime.
O Ministério Público sequer possui legitimidade para buscar a reparação
civil da vítima, pois, como exposto, a Lei Orgânica prevê a sua atuação como
custos legis (fiscal da lei) ou como representante extraordinário, de causas que
envolvem incapazes ou direitos transindividuais. A denúncia, portanto, decorre
de representação extraordinária do Estado, da sociedade como um todo, da
busca pela manutenção da ordem pública, dos direitos sociais. O Ministério
Público não tem legitimidade para postular direitos patrimoniais privados de
caráter individual, à exceção do já demonstrado direito de incapazes.
6 EFEITO EXTRAPENAL DA SENTENÇA PROFERIDA PELO JUÍZO
CRIMINAL
A sentença penal condenatória tem o condão de tornar certa a obrigação
de indenizar. A certeza, frise-se, é um dos requisitos da obrigação para a sua
execução no juízo cível, a teor do disposto nos arts. 580 e 586 do CPC. Tendo
certeza, caberá à vítima buscar a liquidez, que constitui o valor da indenização,
e aguardar a exigibilidade, que se dá em 15 dias a partir da decisão que julgar
a liquidação49.
Sobre o efeito extrapenal da ação penal condenatória, “trata-se de efeito
automático, que não necessita ser expressamente pronunciado pelo juiz na
sentença condenatória e destina-se a formar título executivo judicial para a
propositura de ação civil ex delicto”50. No caso da execução direta no cível, a
vítima poderá executar a parte líquida, se houver, enquanto, simultaneamente,
liquida a ilíquida51. Da sentença penal condenatória “[…] nascem duas ações
diferentes: a ação penal, cujo titular é o Ministério Público; e a ação civil
reparatória ex delicto, que incumbe à vítima do dano.”52
Existe, assim, a possibilidade de o juiz criminal trazer, em sua sentença
condenatória, um valor indenizatório a ser pago pelo criminoso à vítima do ato.
7. A CONDENAÇÃO DE MATÉRIA CIVIL NA SENTENÇA PENAL
CONDENATÓRIA
Com o advento da redação do inciso IV do art. 387 do CPP, coube ao
juiz criminal inserir, no bojo do dispositivo da sentença, um mínimo
indenizatório a ser pago pelo criminoso à vítima. Justamente por se tratar de
matéria alienígena ao juízo criminal, o quantum previsto na sentença penal
condenatória constituirá uma faculdade e um piso, um mínimo que terá o
escopo de não deixar a vítima imediatamente desamparada enquanto discute o
montante total da sua indenização.
49
Art. 475-J do CPC.
50
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 3. ed. São Paulo: RT, 2003, p.
321.
51
Art. 475-I, § 1º do CPC.
52
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 12. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 171.
A sentença penal condenatória dotada de semelhante efeito é a
definitiva, transitada em julgado – não existe execução provisória -, e
submetida, obrigatoriamente, ao procedimento de liquidação (art.
475-A do CPC), exceto no que respeita ao valor fixado no próprio ato
a título de perdas e danos (art. 63, parágrafo único, do CPP, c/c art.
387, IV, do CPP). Não se pode supor, ante o princípio da separação,
que o juiz penal haja liquidado, senão de modo parcial, a obrigação
de reparar o dano civil. Aliás, há até citação pessoal na liquidação, ou
na execução da parte líquida (art. 475-N, parágrafo único), formandose “novo” processo. Na liquidação, notou Ovídio A. Baptista da Silva,
magistralmente, às vezes afloram questões inatendíveis em sede
penal e, contudo, relevantes no âmbito da ação reparatória. Dentre
elas se destaca a participação da vítima no resultado, comumente
chamada de “culpa concorrente”. É o momento de considerá-la, sem
o mínimo atentado à indiscutibilidade do efeito anexo, pois dito
elemento concerne à quantificação do dano.53
Caberá, portanto, ao juízo cível apurar a extensão total do dano sofrido
pela vítima que ultrapasse o piso disposto na sentença criminal através de
liquidação de sentença. Assis, porém, equivoca-se ao dizer que não existe
execução provisória de sentença penal condenatória transitada em julgado.
Não existe, por óbvio, nos termos do art. 475-I, § 2º do CPC; mas existe nos
termos do art. 475-M, § 1º do mesmo diploma legal, que permite a execução
mediante caução quando o juiz atribuir efeito suspensivo à impugnação ao
cumprimento da sentença.
O próprio juízo criminal não tem estrutura para apurar, no processo,
todos os danos sofridos pela vítima. Qualquer elemento que determine a
aceitação pela vítima do valor disposto na sentença penal condenatória como
total reparador do dano sofrido violaria em absoluto o princípio constitucional
da ampla defesa, haja vista a impotência do ofendido perante a condução do
processo criminal, em especial a produção das provas que lastreiam seu direito
patrimonial privado54.
53
ASSIS, Araken de. Manual da Execução, pp. 173-4.
54
Nesse sentido, a 6ª Turma do STJ decidiu que “Inexistindo nos autos elementos que
permitam a fixação do valor, mesmo que mínimo, para reparação dos danos causados pela
infração, o pedido de indenização civil não pode prosperar, sob pena de cerceamento de
defesa” (REsp 1176708 / RS. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. DJe 20.06.2012).
8 A INEFICÁCIA DO ART. 387, IV DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL EM
FACE DAS ATUAIS INTERPRETAÇÕES DOS TRIBUNAIS E NOTAS
CONCLUSIVAS
A intenção do legislador ao criar a redação do inciso IV do art. 387 do
CPP pode ter sido das melhores, afinal, para a reparação do dano sofrido por
ato criminoso mesmo o único imóvel residencial da entidade familiar do
condenado é penhorável55. Mas de nada adianta tal previsão legal se a
reparação vem tardia, mesmo porque qualquer desfazimento de bens pelo
criminoso na fase de liquidação de sentença não constitui fraude à execução,
nos termos previstos no art. 593 do CPC.
Ademais, a razoável duração do processo, prevista expressamente no
inciso LXXVIII do art. 5º. da CRFB, faz com que a demora ocasionada pelo
processo na obtenção do bem da vida constitua violação direta a direito
fundamental. Os mecanismos processuais, entre eles os já mencionados arts.
387, IV do CPP e 475-I, § 1º do CPC, buscam dar efetividade à tutela
condenatória, permitindo à vítima penhorar bens do réu em razão da tutela
executiva enquanto, simultaneamente, busca a liquidação do saldo
remanescente.
Mas, atualmente, alguns tribunais têm interpretado essa sistemática de
modo pouco proveitoso para o processo. Inicialmente, o Superior Tribunal de
Justiça fixou o entendimento de que é impossível a concessão do piso
indenizatório de ofício pelo magistrado, devendo haver requerimento expresso
pelo ofendido para tal. Considerando o princípio processual da congruência
que vincula a tutela jurisdicional ao pedido (arts. 128 e 460 do CPC), o Tribunal
tem razão. Segue parte do voto do eminente relator:
Isso estabelecido, a permissão legal de cumulação de pretensão
acusatória com a de natureza indenizatória não dispensa a existência
de expresso pedido formulado pelo ofendido, dada a natureza privada
e exclusiva da vítima daquela pretensão. Além disso, deve haver a
participação do réu, sob pena de frontal violação ao seu direito de
contraditório e ampla defesa, na medida em que o autor da infração
55
Cf. art. 3º, VI da Lei nº. 9.099/90 – Lei do Bem de Família.
faz jus à manifestação sobre a pretensão indenizatória e seu
quantum, que, se procedente, pesará em seu desfavor.
Portanto, o legítimo exercício da pretensão indenizatória reclama a
verificação da presença das condições da ação e dos pressupostos
processuais.
A fixação de indenização sem o correspondente pedido implica
violação ao princípio da correlação, incidente sobre os processos
cíveis e penais.
(REsp 1236070 / RS. STJ, 5ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze.
Dje 11.05.2012)
Apesar de corretíssima a preocupação com a garantia à ampla defesa e
ao contraditório, surge a questão principal: nos crimes de ação penal pública,
como pode o ofendido realizar o pedido indenizatório? A peça inaugural da
ação criminal é a denúncia do Ministério Público, não existindo qualquer
possibilidade de o ofendido adita-la ou emenda-la. É requisito impossível sob a
ótica do Processo Penal, e imprescindível sob a do Processo Civil.
Talvez essa simbiose entre matérias seja o causador principal da
confusão aventada. O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina vai
além, determinando que haja pedido formal do ofendido no sentido de haver as
perdas e danos, ou do Ministério Público, para que o magistrado possa aplicar
a condenação mínima do art. 387, IV do CPP56.
Conforme já demonstrado, é ilícito e inconstitucional ao Ministério
Público agir na defesa de direitos patrimoniais privados, à exceção das causas
que versem sobre direitos transindividuais ou de incapazes. Não pode, sob
pena de ofensa à CRFB, o MP pedir, na denúncia, a reparação da vítima pelos
danos que sofrera em razão do ato criminoso.
A interpretação dos tribunais cria um obstáculo intransponível à vítima: o
de ter o direito à indenização, mas ter tolhidas as ferramentas para obter o bem
da vida em um prazo razoável.
Será ela obrigada a aguardar e aguardar. Primeiro, o decurso da ação
penal até o seu trânsito em julgado. Em seguida, o decurso da liquidação de
56
Apelação Criminal n. 2010.074356-5, de Criciúma, rel. Des. Alexandre d’Ivanenko, j. em
22.03.2011.
sentença, que poderá muito bem ser por artigos, o que constituirá novo
processo de cognição plenária. A seguir, e somente a seguir, poderá buscar a
tão sonhada reparação do dano sofrido – o bem da vida -, se o criminoso, já
condenado, ainda possuir algum patrimônio passível de execução.
Não bastam ferramentas. Não basta boa intenção. O legislador parece
não prever sistematicamente como a sua obra será aplicada na prática e,
nesse sentido, não parece haver saída ou solução adequada.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 12. ed. São Paulo: RT, 2009.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. 2. tiragem. São
Paulo: Malheiros, 2003
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil, v. 1. Campinas:
Servanda, 1999.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2001.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 14. ed. Atualizada,
inclusive em face da Emenda Constitucional n. 45/2004, São Paulo: Saraiva,
2005.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, v. 2: as
relações processuais; a relação processual ordinária de cognição. Trad. da 2.
ed. italiana por J. Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1943.
COSTA Jr.. Paulo José da. Curso de Direito Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva,
2008.
MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHARDT, Sérgio Cruz. Curso de Processo
Civil – Execução. 2. ed. São Paulo: RT, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 3. ed. São Paulo:
RT, 2003.
PIZZOL, Patrícia Miranda. A competência no processo civil. Coleção
estudos de direito de processo Enrico Túlio Liebman – v. 55. São Paulo: RT,
2003.

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