Os direitos transindividuais do consumidor em juízo e os princípios fundamentais são interligados por meio de um sistema de normas complexas que visa proteger o consumidor em sua condição de vulnerável.
Sumário:INTRODUÇÃO – 1 INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS – 1.1 Interesses difusos – 1.2 Interesses coletivos – 1.3 Interesses individuais homogêneos – 2 TUTELAS JURÍDICAS DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS – 2.1 As ações coletivas previstas no CDC – 2.1.1 A Ação Popular – 2.1.2 A Ação Civil Pública – 3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E A TUTELA JURISDICIONAL DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS – CONCLUSÃO – REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Os direitos transindividuais do consumidor em juízo e os princípios fundamentais são interligados por meio de um sistema de normas complexas que visa proteger o consumidor em sua condição de vulnerável e, por isso, trata desigualmente os desiguais nas ações judiciais que versem sobre relações de consumo. O Código de Defesa do Consumidor [01] trouxe diversas inovações no ordenamento jurídico brasileiro, seja nos casos de interesses privados, ou de interesses públicos, a fim de efetivar essa proteção especial.
O CDC trouxe conceitos de consumidor e fornecedor, práticas abusivas das relações de consumo, princípios das relações de consumo e toda uma nova orientação procedimental para a defesa dos chamados direitos transindividuais que afetou, inclusive, textos procedimentais consolidados como a Lei da Ação Civil Pública [02] e o Código de Processo Civil (CPC).
Com o escopo de ampliar a proteção dos interesses coletivos lato sensu, o CDC conceituou os interesses transindividuais como difusos, coletivos e individuais homogêneos, que, com a abrangência do dispositivo com que a lei descreve, também, o consumidor equiparado, alargou as possibilidades da tutela protetiva do Estado aos direitos lesados ou ameaçados de lesão em relações de consumo.
Dispositivos legais como a LACP e a Lei da Ação Popular [03] encontraram no CDC os conceitos e preceitos de que precisavam para, com seu caráter intersubsidiário, abraçar todas as possibilidades de proteção aos interesses transindividuais. Mesmo com o sopesamento de princípios e normas, a tutela do interesse do consumidor, e sua condição de cláusula pétrea e de princípio da ordem financeira constitucional, somados ao princípio da dignidade humana, que pretere o interesse do capital reinante na sociedade capitalista, se sobressaem perante os demais.
Versando sobre esses temas, tanto na esfera privada, como na pública, e visando um esclarecimento acerca das reais possibilidades de defesa dos direitos transindividuais dos consumidores em juízo, bem como dos deveres de proteção e de proibição de insuficiência do Estado nos julgados que tratarem da matéria, este artigo busca alguns esclarecimentos oriundos da jurisprudência e da doutrina em face de uma prática jurídica ainda em fase de efetiva consolidação no processo brasileiro: as ações coletivas.
1 INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
Segundo a acepção do termo, transindividual refere àquilo que transcende o indivíduo, que vai além do caráter individual da percepção do interesse existente. O ordenamento jurídico brasileiro tem recente em sua história o tratamento aos direitos transindividuais e a sua proteção e previsão quanto à efetiva tutela jurisdicional, pois seu reconhecimento como ramo do direito privado ocorreu de maneira gradual no procedimento legislativo nacional.
O Código Civil de 1916 tratava, basicamente, das questões individuais de direito civil, do inter-relacionamento entre particulares e suas respectivas obrigações, não dando azo à proteção dos direitos e interesses relativos a grupos de pessoas de maneira eficaz e efetiva. Nem mesmo o Código de Processo Civil (CPC) trata de maneira abrangente as possibilidades de se buscar a prestação jurisdicional do Estado de maneira coletiva.
“Nos últimos anos, tem-se reconhecido que existe uma categoria intermediária de interesses que, embora não sejam propriamente estatais, são mais que meramente individuais, porque são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas […]” [04]. Esses direitos, apesar de transcenderem o caráter individualista de seus interessados, não podem ser considerados interesses de direito público, pois não contrapõem um interesse do Estado ao interesse do indivíduo.
MAZZILLI [05], em relação à evolução desses interesses transindividuais no ordenamento jurídico brasileiro, diz:
No Brasil, a defesa dos interesses de grupos começou a ser sistematizada com o advento da Lei n. 7.347/85 – Lei da Ação Civil Pública (LACP), e, em seguida, com a Lei n. 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor (CDC), que distinguiu os interesses transindividuais em difusos, coletivos em sentido estrito, e individuais homogêneos.
É basicamente sobre os direitos transindividuais descritos no CDC que tratará o presente artigo, pois ainda pouco eficaz a sua distinção para efeitos de proteção e de tutela a serem exercidos pelo Estado em relação aos grupos com interesses coletivos lato sensu e aos titulares desses direitos.
O CDC descreve que “a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo” [06], e seu procedimento remete à LACP, que, em seu art. 1º, destaca o âmbito de sua aplicação, que visa a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas, a qual, de igual forma, poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Os interesses transindividuais também podem ser chamados de interesses coletivos lato sensu, eis que compartilhados por grupos de pessoas que tenham em comum um direito gerado a partir do mesmo fato ou ato jurídico. O surgimento da necessidade da proteção do Estado a esses interesses transindividuais surgiu como meio de garantir não apenas a eficácia dos direitos fundamentais dos indivíduos como integrantes de um coletivo lesado ou ameaçado de lesão a um bem jurídico seu, mas também a efetividade da tutela jurisdicional a todo o coletivo detentor do interesse, bem como a economia e a celeridade processual a fim de garantir outro princípio: o da razoável duração do processo.
Coletividades de indivíduos com interesses comuns oriundos de um mesmo fato, por exemplo, ao terem sua pretensão julgada em um processo coletivo, têm mais chances de ver sua lide composta em tempo razoável do que se proporem ações individuais, além de ficarem restritas a disparidades em julgados diferentes sobre um mesmo objeto, minimizando, assim, a injustiça entre componentes de um mesmo grupo com interesses coletivos lato sensu.
Em relação aos deveres de proteção estatal do indivíduo perante terceiros, ANDRADE [07] diz:
Os preceitos relativos aos direitos fundamentais dirigir-se-iam em primeira linha às relações entre os particulares e os poderes públicos, mas estes, para além do dever de os respeitarem (designadamente de se absterem de os violar) e de criarem as condições necessárias para a sua realização, teriam ainda o dever de proteger contra quaisquer ameaças, incluindo as que resultam de atuação de outros particulares.
Compreendem, portanto, os atos das relações de consumo que tenham como participantes entes privados na condição de fornecedores ou prestadores de serviço; possibilidade que abrange, também, os entes estatais que figuram como fornecedores ou prestadores de serviços, consoante o conceituado no art. 3º do CDC.
Nos casos de interesses transindividuais, a ordem jurídica reconhece a necessidade de que o acesso individual dos lesados à Justiça seja substituído por um processo coletivo, que, segundo MAZZILLI [08], “não apenas deve ser apto a evitar decisões contraditórias como ainda deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido de uma só vez, em proveito de todo o grupo lesado”.
José Afonso da SILVA [09] diz que a ação popular “há de visar a defesa de direito ou interesse público. O qualificativo popular prende-se a isto: defesa da coisa pública, coisa do povo (publicum, de populicum, de populum)”. Tal encontra guarida no art. 5º, LXXIII da CF, que reza: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”. Pela letra da Lei, está restrita ao interesse público a condição para que o cidadão proponha a ação popular, não incidindo sua legitimidade ao interesse privado de caráter coletivo [10].
Outra inovação que o CDC trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro foi dividir os direitos, ou interesses, transindividuais dos consumidores em um subgrupo, composto por interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, classificados consoante o grupo de indivíduos atingidos, a divisibilidade do interesse e a origem da lesão ou ameaça à lesão a direito do grupo. Tal divisão encontra-se elencada no art. 81 do dispositivo legal, que visa legitimar a defesa coletiva em juízo.
1.1 Interesses difusos
Dentre os interesses transindividuais descritos no parágrafo único do art. 81 do CDC, o primeiro arrolado refere-se aos direitos ou interesses difusos, como sendo “os transindividuais de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.
Ressalte-se que, assim como descrito ao final do dispositivo introdutório do presente capítulo, as características dos interesses difusos levam em conta, respectivamente, a divisibilidade do interesse (interesses de natureza indivisível), o grupo de indivíduos atingidos (pessoas indeterminadas) e a origem da lesão ou da ameaça de lesão a direito (ligadas por circunstâncias de fato). MAZZILLI [11] diz que, “melhor do que pessoas indeterminadas, são antes pessoas indetermináveis, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou fático preciso”.
Um exemplo de interesses difusos, que vem a compartilhar com a polêmica a ser invocada em capítulo posterior no presente artigo, é a da propaganda enganosa ou abusiva, prevista nos arts. 6o, IV e 37 do CDC, que atinge um número indeterminado de pessoas, sendo que seus efeitos são igualmente indetermináveis em relação aos espectadores como um todo. Como destacar exatamente quais as pessoas lesadas por uma propaganda enganosa? A única maneira seria constatando quais, entre os espectadores, consumiram o produto cuja informação falsa fora veiculada na propaganda, mas, nesse caso, passaria de interesse difuso para interesse individual homogêneo [12].
A propaganda, segundo o CDC, pode ser enganosa ou abusiva. É “enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços” [13]; e “abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança” [14].
Tanto a pessoa que somente assistiu à propaganda, como aquela que comprou o produto o qual a propaganda erroneamente descrevera, como todas as pessoas atingidas pelo vício ou fato do produto comprado em função do anúncio veiculado são considerados consumidores lesados e detentores de uma pretensão jurídica fruto de um interesse difuso (independentemente dos casos de direitos individuais homogêneos). Porém, não se pode determinar exatamente até que ponto cada pessoa foi atingida pela propaganda abusiva ou enganosa, nem mesmo exatamente quem foi atingido e de que maneira específica isso ocorreu. Tal caso é, exatamente, exemplo de interesses difusos como descrito pelo CDC.
O parágrafo único do art. 2º do CDC, ampliando o conceito de consumidor, descreve como consumidor equiparado, e, portanto, detentor de direitos e interesses referentes às práticas abusivas ocorridas em relações de consumo, “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. Em face de tal distinção, MAZZILLI [15] refere-se aos detentores de interesses difusos como sendo
os destinatários de propaganda, especialmente aquela divulgada nos veículos globais de comunicação (rádio, televisão, jornais, painéis publicitários em locais públicos etc.), pois a mera propaganda já cria deveres e direitos numa provável relação de consumo, seja quando tem caráter enganoso ou abusivo, seja quando promete condições que vinculam o proponente.
Não descrito, no contexto acima, mas de suma importância para os dias atuais, estão as propagandas veiculadas através da internet, em forma de spam, hostsite, pop ups, links e outras diversas maneiras as quais, remetendo diretamente ao conceito legal de propaganda abusiva, tornam impossível ao usuário (sendo doravante assim denominado aquele que navega na internet e, principalmente, detém um protocolo de IP [16] através de e-mail ou site pessoal) se esquivar ou impedir o seu recebimento. Patrícia PECK define: “hostsites: termo que define formato de publicidade que consiste na formação de um site de tamanho reduzido com tempo de vida curto” [17]; “spam: ato praticado por pessoa ou empresa que envia e-mails não solicitados, tendo ou não objetivos maliciosos, todos porém invadindo a privacidade do destinatário, perturbando sua paciência” [18].
Atualmente, a maioria das pessoas de uma mesma família, que possuam um computador pessoal, compartilham o mesmo aparelho. Não obstante o fato de que cada um pode ter seu protocolo de IP, seu e-mail pessoal, todas as pessoas usuárias da internet, não importando se proprietário direto de um computador ou não, são atingidas pela propaganda digital. Fato que amplia a condição de indeterminados os grupos atingidos pela veiculação de propaganda através da internet, bem como da impossibilidade de se coibir tal forma de divulgação de informação abusiva a qual não fora solicitada pelo usuário.
1.2 Interesses coletivos
O CDC descreve como sendo “interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, […] os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base” [19]. As características dos interesses coletivos, assim como os difusos, levam em conta, respectivamente, a divisibilidade do interesse (interesses de natureza indivisível), um grupo de indivíduos determinados atingidos (categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com parte contrária) e a origem da lesão ou da ameaça de lesão a direito (ligadas por uma relação jurídica base).
Nos casos de interesses coletivos stricto sensu, “a lesão ao grupo não decorrerá propriamente da relação fática subjacente, e sim, da própria relação jurídica viciada que une todo o grupo” [20], como, por exemplo, um contrato de adesão que contenha cláusulas abusivas. O grupo de contratantes estará ligado por uma relação jurídica básica comum, sendo determinado o grupo e a relação jurídica, mas não o tamanho, a extensão da lesão sofrida por cada contratante individualmente.
Para individualizar o dano ocorrido em face de um interesse coletivo stricto sensu pleiteado em juízo de forma coletiva, se faz necessária a respectiva liquidação de sentença, a ser pleiteada individualmente por cada um dos interessados que fizeram parte do pólo ativo do processo de conhecimento coletivo. Dessa maneira, somente, um interesse coletivo pode ter identificados os interesses individuais de cada uma das partes atuantes na demanda, caracterizando, assim, a presença de interesses individuais homogêneos.
1.3 Interesses individuais homogêneos
Os interesses individuais homogêneos são “assim entendidos os decorrentes de origem comum” [21]. MAZZILLI [22] diz que, “para o CDC, interesses individuais homogêneos são aqueles de grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis, que compartilhem prejuízos divisíveis, de origem comum, normalmente oriundos das mesmas circunstâncias de fato”.
Na acepção do termo, os interesses individuais homogêneos são aqueles individualizáveis consoante o direito concernente a cada componente de um grupo definido, cujas partes estão solidamente ligadas pela mesma natureza. Segundo GRINOVER [23]:
A origem comum pode ser de fato ou de direito e, como observou Kazuo Watanabe, a expressão não significa, necessariamente, uma unidade factual e temporal. As vítimas de uma publicidade enganosa veiculada por vários órgãos de imprensa e em repetidos dias de um produto nocivo à saúde adquiridos por vários consumidores num largo espaço de tempo e em várias regiões têm, como causa de seus danos, fatos de uma homogeneidade tal que os tornam a ‘origem comum’ de todos eles”.
Humberto THEODORO JÚNIOR [24] diz que “os interesses individuais homogêneos tanto podem ser tutelados individualmente, em ações movidas pelo ofendido, como coletivamente, em ações de grupo, como aquelas promovidas por sindicatos e associações”, o que expressa o duplo caráter do interesse: individual e coletivo lato sensu.
Um exemplo já citado de interesses individuais homogêneos é o do consumidor que comprou um produto cuja propaganda descrevia erroneamente uma qualidade, ou não informava sobre seu caráter nocivo à saúde. Todos os consumidores que compraram o produto em função da veiculação do comercial enganoso possuem um interesse individualizável, pois aquele que comprou apenas um produto terá o interesse diferente daquele que comprou dois e assim sucessivamente. Da mesma maneira, quem comprou um produto que ainda não ocasionou o fato danoso decorrente de seu defeito oculto terá pretensões diversas daquele cujo produto comprado ocasionou um fato danoso. “Cada indivíduo lesado tem direito próprio a exercitar individualmente contra o fornecedor” [25], nos casos de direitos individuais homogêneos.
2 TUTELAS JURÍDICAS DE INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
Em se tratando de tutela jurisdicional de interesses transindividuais, ou coletivos lato sensu, a primeira questão que surge é em relação à legitimidade para figurar no pólo ativo da ação, ou a legitimatio ad causam. Normalmente, em interesses individuais, o próprio indivíduo lesado possui a legitimidade para postular em juízo um direito seu, pessoal. THEODORO JÚNIOR [26] diz que “a legitimação ativa caberá ao titular do interesse afirmado na pretensão, e a passiva ao titular do interesse que se opõe ou resiste à pretensão”.
A legitimidade de parte é condição da ação, e, como tal, sua ausência acarreta a extinção do processo sem o julgamento do mérito [27]. Mas há de se fazer uma distinção entre legitimação ordinária e extraordinária, que surge auxiliando na compreensão do presente estudo sobre direitos transindividuais. A já explicada legitimação do titular do interesse para pleitear pessoalmente em juízo é conhecida, pela doutrina, como legitimação ordinária [28].
Em razão dos diversos casos que caracterizam cada lide processual em particular, CARNELUTTI [29] diz:
Se uma lide fosse simplesmente um conflito intersubjetivo de interesses, seus sujeitos seriam sempre e simplesmente os dois homens ou dois grupos aos quais pertencem os dois interesses em conflito; mas a coisa se complica refletindo-se que para constituir a lide se tem que acrescentar a cada interesse a pretensão ou a resistência, que são, como veremos, atos jurídicos. […] A dificuldade oposta por tais fenômenos à construção do conceito de sujeito da lide se supera do mesmo modo como se constrói o conceito da relação jurídica, compondo, com a pessoa a quem pertence o interesse e com a outra pessoa a quem remonta a vontade, um grupo ao qual a teoria geral dá o nome de pessoa complexa. Também o sujeito da lide pode ser, portanto, uma pessoa simples ou uma pessoa complexa igual ao sujeito da relação jurídica.
A legitimação extraordinária trata dos casos em que alguém, em nome próprio, defende interesse alheio, em consonância com expressa autorização legal. Configura uma substituição processual, diferentemente de representação processual, e pode ocorrer, por exemplo, com o Ministério Público (MP) nas ações a título coletivo de que tem legitimidade por força de lei. [30]
Destarte, a legitimação extraordinária “não pode prejudicar ou empecer o poder da vontade dos titulares dos direitos subjetivos, mesmo porque, não se pode esquecer, […] não importa a ‘expropriação do poder de disposição e faculdade de valoração do substituído’” [31]. A substituição deve ser de caráter voluntário por parte do substituído, que constitui seu órgão de classe, ou mesmo o MP, como seu substituto por livre e espontânea vontade.
Existe, em parte da doutrina, o entendimento de que, quando ocorrer o fato de alguém defender interesses alheios e próprios simultaneamente em ações coletivas, existiria uma legitimação anômala de tipo misto, como, por exemplo, os casos das associações de classe, em que o substituto é parte integrante do grupo de interessados [32]. Assim, MAZZILI diz que “legitimação extraordinária há, somente, nas ações civis públicas que versem a defesa de interesses individuais homogêneos, pois, nesses casos, os legitimados ativos para as ações de caráter coletivo não são os mesmos titulares dos interesses divisíveis dos indivíduos integrantes do grupo lesado” [33].
2.1 As ações coletivas previstas no CDC
“Estas ações prestam-se basicamente à defesa de interesses transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos). Por meio delas, alguns legitimados substituem processualmente a coletividade de lesados (legitimação extraordinária)” [34]. A ação coletiva visa a celeridade e a economia processual, bem como a facilitação da instrução e da fase probatória do processo, que ficariam excessivamente penosos, tanto para as partes como para o órgão instrutor, se o exercício da tutela jurisdicional se desse individualmente a todos os interessados.
Também, a já citada disparidade nos julgados individuais de interesses coletivos lato sensu traria um sentimento de injustiça, o qual, com as ações a título coletivo, se reduzem, ou até mesmo se extinguem. O direitos coletivos lato sensu, ao terem a tutela jurisdicional exercida em ações coletivas, diminuem a possibilidade da desistência de indivíduos frente às dificuldades e burocracias do procedimento processual, o que, em caráter individual, pode se tornar comum, caracterizando uma restrição do princípio do acesso à justiça.
O CDC trata das ações coletivas para a defesa dos interesses individuais homogêneos nos arts. 91 a 100, segundo os quais “os legitimados de que trata o art. 82 poderão propor, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos” [35]. Cria, portanto, um novo instituto processual, que é a ação civil coletiva.
O procedimento da ação civil coletiva do CDC refere-se aos casos de defesa de interesses individuais homogêneos que, como tais, precisam ter individualizadas as indenizações pelos danos sofridos segundo a gravidade em que cada integrante do grupo foi atingido, através de liquidação de sentença, bem como a sua conseqüente execução. As demais possibilidades dos casos que tratam de interesses difusos e coletivos [36], além da previsão do CDC, serão regidas pelas leis que tratam da ação civil pública e da ação popular.
Para o CDC, a legitimidade ativa para a propositura de ações coletivas é concorrente entre o MP, a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, certas entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta e as associações civis que tenham por fim a defesa dos interesses de consumidores [37].
Os interesses individuais homogêneos, ao contrário dos difusos e dos coletivos, não necessitam ser exercidos em juízo de maneira coletiva, e, caso se requeira individualmente a tutela jurisdicional, a pré-existência de uma ação coletiva não induz a litispendência [38]. Em relação aos interesses coletivos e aos difusos, esses também podem ser exercidos em juízo a título coletivo sem que induzam litispendência ao exercício individual da tutela jurisdicional, pelo fato de, em ambos os casos, serem indivisíveis.
Nas ações coletivas, “entre o órgão substituto e os indivíduos substituídos tem de haver um vínculo necessário, seja de ordem pública ou privada” [39], sendo este último autorizado pela CF, que preceituou que “as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente” [40]. Como a mesma constituição proibiu a associação compulsória, presume-se que às associações é vedada a defesa judicial de interesses referentes a não associados [41].
THEODORO JÚNIOR [42], nesse sentido:
Há possibilidade, também, de a instituição ter sido concebida para defesa, no âmbito do interesse de seus associados, tanto de direitos individuais como de direitos difusos e coletivos. Nessa conjuntura, a associação atuará, por ação civil pública, na defesa de interesses que, naturalmente, ultrapassarão o de seus associados.
A letra do CDC, no art. 95, diz que “em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados”, sendo, assim, individualmente indeterminada. ARAÚJO FILHO [43], nesse sentido:
Por isso, para que seja realmente coletiva a ação respeitante a interesses individuais, é indispensável que seja(m) formulado(s) pedido(s) individualmente indeterminado(s), que desprezem e necessariamente desconsiderem as peculiaridades agregadas à situação pessoal e diferenciada de cada interessado, como diz a doutrina, para permitir a prolação da sentença genérica prevista em lei.
Exemplificando, a sentença declara o requerido responsável pelo dano causado a um grupo de autores e, conseqüentemente, condena-o a indenizá-los por isso de maneira genérica. O quantum indenizatório a cada um dos autores dependerá de liquidação em processo autônomo e de caráter individual, bem como sua execução, eis que impossível uma execução coletiva para este caso previsto no CDC.
Prova da intenção do CDC em promover a economia e a celeridade processual também está no seu art. 94, que amplia as possibilidades de atuação no pólo ativo da relação jurídica em processo coletivo, dizendo que, “proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor”. Abre-se, dessa maneira, espaço para o ingresso de interessados individuais na mesma condenação genérica, mas sem que estes possam formular pedidos individualizados e diversos da inicial proposta pelo coletivo.
Em relação à coisa julgada em ações coletivas regidas pelo CDC, esta terá eficácia erga omnes nos casos de interesses difusos, exceto “se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova” [44]. Terá, porém, em casos de interesses coletivos stricto sensu, eficácia “ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas”, nos termos do inciso I do art. 103 [45]. Em ambos os casos, os efeitos da coisa julgada “não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe” [46].
Por fim, em se tratando de interesses individuais homogêneos, a coisa julgada em processos coletivos terá eficácia “erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores” [47]. “Em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual” [48], em face do já referido caráter individual do interesse juridicamente pleiteado. Dessa forma, o réu que lesou direitos individuais homogêneos poderá figurar no pólo passivo de qualquer ação proposta individualmente por pessoa que, mesmo não tendo figurado na ação coletiva que o condenou, é titular de um interesse individual idêntico ao do grupo, evitando, assim, a necessidade de novo processo de conhecimento e de nova instrução processual sobre fato já apreciado e comprovado judicialmente.
2.1.1 A Ação Popular
Dentre as formas de ações coletivas previstas no ordenamento jurídico brasileiro, a Ação Popular surgiu com o advento da Lei nº 4.717 de 1965, a chamada Lei da Ação Popular (LAP).
Qualquer cidadão é legitimado para propor a Ação Popular, a fim de pleitear a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista ou mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, instituições ou fundações [49]. A pessoa jurídica, por sua vez, não tem legitimidade para propor ação popular [50].
Originalmente criada para defender o interesse público, refere-se à possibilidade de ter pessoas privadas dentre os sujeitos passivos da lide processual [51]. “O autor popular não defende interesse próprio mas sim o da comunidade. Esta é que é o verdadeiro credor. […] o autor age como verdadeiro substituto do Poder Público” [52].
Juarez FREITAS [53], em relação à capacidade ativa nesses casos, diz:
[…] se é certo que a Constituição não conferiu legitimidade extraordinária expressa a associações em defesa do patrimônio público ou da moralidade administrativa, não é menos verdade que, ao permitir a qualquer cidadão o ingresso da ação popular, outorgou legitimidade abarcante para a proteção de interesses difusos.
[…]
De sua vez, o Ministério Público necessariamente deve atuar como custus legis na ação popular. Não possui para esta a legitimação ad causam. […] autoriza-se que qualquer cidadão, bem como o representante do Ministério Público, promova o prosseguimento da ação (art. 9o), se houver desistência.
O pedido, na ação popular, deve limitar-se à anulação de ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente ou ao patrimônio cultural, casos em que o interesse predominante é difuso ou coletivo, mas jamais será o individual homogêneo.
Apesar de o CDC fazer menção expressa somente à Ação Civil Pública, a Lei de Improbidade Administrativa, juntamente com a Lei da Ação Civil Pública, da Ação Popular, do Mandado de Segurança Coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos interesses transindividuais e, sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiam-se. [54]
Por não atender interesses de caráter privado, mas somente coletivos, a ação popular dispensa seu autor do pagamento de custas processuais e ônus sucumbenciais, mesmo quando improcedente o pedido, salvo nos casos de comprovada má-fé [55]. “Se tal suceder, faz-se necessária a extinção do processo sem julgamento do mérito, derivada da falta de interesse de agir [56], suportando o litigante de má-fé, aí, sim, as custas e os ônus sucumbenciais” [57].
Existe a possibilidade de interesse público do consumidor, o qual pode ser incluído na tutela protetiva da ação popular. Consoante MACEDO JÚNIOR [58]:
Conforme afirmado, tanto a ação popular como a ação civil pública são instrumentos de tutela dos direitos e interesses difusos e coletivos, razão pela qual o dispositivo citado [art. 117 do CDC] lhes é aplicável. Evidentemente, a reversão das indenizações por danos aos interesses difusos é uma das hipóteses em que é aplicável o Título III do CDC à Lei de Ação Popular.
Pela própria amplitude do conceito de interesses difusos, o cabimento de ações populares para os casos regulados pelo CDC faz necessária a existência de um interesse público a ser preservado. A exemplo disso, os consumidores de serviços públicos, como os casos de concessões e permissões de serviços públicos instituídos pela Lei n. 8.987/1995, em que “a luta pela eficácia social do princípio da proteção do consumidor de serviços públicos, implica o reconhecimento técnico e fático da vulnerabilidade dos usuários” [59].
Atualmente, a Ação Civil Pública tem maior abrangência quanto à tutela dos interesses em conflito, mas a possibilidade de um cidadão, individualmente, pleitear em juízo a defesa de um direito difuso, faz com que a amplitude da defesa dos direitos e dos interesses da coletividade seja garantida por um maior acesso ao Poder Judiciário.
2.1.2 A Ação Civil Pública
A Lei nº 7.347 de 1985, conhecida como Lei da Ação Civil Pública (LACP), surgiu com a finalidade de disciplinar a ação civil pública de responsabilidade por danos patrimoniais e morais causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, sem prejuízo da ação popular.
A LACP e o CDC se complementam, a ponto de ambas disporem do mesmo dispositivo procedimental [60], sendo que o último, por ser lei ulterior, alterou de forma substancial o texto original da primeira. Tanto que os arts. 110 a 117 do CDC servem com o único propósito de alterar o texto da LACP.
Diferentemente da ação popular, a ação civil pública poderá ter por objeto tanto a condenação em dinheiro como o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer [61], bem como não é permitido ao cidadão comum ser autor da ação, mas somente os entes descritos no CDC [62].
Com relação aos efeitos da coisa julgada em ações civis públicas, de que cuida o art. 16 (erga omnes nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se improcedente o pedido por insuficiência de provas), combinado com o art. 13 da LACP, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista no CDC, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99 da lei de proteção ao consumidor.
ARAÚJO FILHO [63], nesse sentido:
Como o CDC é posterior à LACP, e estabeleceu, entre nós, um inédito sistema processual para as ações coletivas para tutela de interesses individuais homogêneos, suprindo uma carência da Lei da Ação Civil Pública, que estava originariamente voltada às ações relativas aos direitos difusos e coletivos, parece-nos que não pode haver dúvida de que hoje é o art. 103, inciso III, do CDC que rege os efeitos da coisa julgada naquele tipo de ação coletiva, até por uma relação de especialidade desta última norma (lex specialis derogat generali).
Em anterior referência ao art. 103, III do CDC, ressalte-se que o mesmo descreve a eficácia da coisa julgada para os casos de ações que versarem sobre direitos individuais homogêneos como sendo erga omnes apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, e não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva [64].
Por se complementarem sibsidiariamente, o CDC e a LACP abrangem na totalidade a tutela jurisdicional que visa proteger os interesses coletivos lato sensu. Se, no CDC, o procedimento tem descrito no seu título a defesa dos interesses individuais homogêneos, na LACP a previsão abrange os interesses difusos e coletivos. “Vai parecer hiperdimensionada também esta última proposição, na medida em que a aplicação processual da LACP e do CDC, pelo sistema atual, é manifestamente integrativa, reciprocamente complementar, inexistindo uma relevante e efetiva dessemelhança a ser superada” [65].
MAZZILLI diz que, “nas ações civis públicas e coletivas, se os danos forem indivisíveis porque difusos, o produto da indenização irá para o fundo previsto no art. 13 da LACP, mas, nas lesões a interesses individuais homogêneos, será oportunamente levantado pelos prejudicados, quando possível.” [66] Ambas as leis compartilham diversos textos de artigos, o que não impede a tutela jurídica ou a apreciação por parte do Poder Judiciário de nenhuma lesão ou ameaça a lesão de direito coletivo, consolidados como princípios constitucionais.
3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E A TUTELA JURISDICIONAL DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto um rol de princípios que visam a tutela de interesses, direitos e deveres individuais e coletivos. O legislador constituinte fez referência aos direitos do consumidor entre os direitos e as garantias fundamentais [67], e nos princípios gerais da atividade econômica [68], visando conceituar, proteger e garantir os direitos individuais ou coletivos daqueles que a lei infraconstitucional qualificou como vulneráveis e hipossuficientes.
A sociedade de consumo é pedra fundamental do sistema capitalista, sendo que, pelo fato de ser a condição econômica critério prevalecente nas definições de poder, o consumidor, individual ou coletivamente considerado, acaba se tornando a parte mais vulnerável. “Isso naturalmente abre larga brecha na economia de mercado, que se esteia, em boa parte, na liberdade de consumo, que é a outra face da liberdade do tráfico mercantil fundada na pretensa lei da oferta e da procura” [69]. SARLET, a respeito do dever de proteção do Estado aos direitos e garantias individuais, diz:
Verifica-se, contudo, que boa parte desses direitos em franco processo de reivindicação e desenvolvimento corresponde, na verdade, a facetas novas deduzidas do princípio da dignidade da pessoa humana, encontrando-se inteiramente vinculados (à exceção dos direitos de titularidade notadamente coletiva e difusa) à idéia da liberdade-autonomia e da proteção da vida e de outros bens fundamentais contra ingerências por parte do Estado e dos particulares. [70]
A idéia, a princípio, é proteger o cidadão garantindo-lhe o pleno exercício de seus direitos fundamentais, seja a título individual ou coletivo, e conter o abuso do poder econômico, que faz com que esses direitos sejam preteridos em relação aos interesses do capital, que, segundo a doutrina consumerista, tem nos fornecedores de produtos e serviços o conhecimento técnico e o poderio financeiro que os consumidores dificilmente terão nas relações de consumo. Daí a necessidade de uma tutela protetiva ampla, garantidora dos direitos dos consumidores em sua plenitude, e ampliadora das possibilidades do acesso à justiça, seja em caráter individual ou coletivo.
Mesmo com a necessidade de regulamentação por lei infraconstitucional, a inclusão dos direitos dos consumidores entre os direitos fundamentais e, portanto, como cláusula pétrea da CF, garantiu a sua permanência e efetividade no ordenamento jurídico brasileiro, eis que não é possível suprimí-la por meio de processo legislativo ordinário [71]. Em relação aos direitos do consumidor como um dos princípios gerais da atividade econômica, José Afonso da SILVA conceitua tal classe como “princípios de integração, porque todos estão dirigidos a resolver os problemas da marginalização regional ou social, […] que é, também, um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, III) […]” [72].
A defesa dos interesses coletivos em juízo pode se dar mediante substituição, que deve ser voluntária, como já aduzido, sob pena de ferir as garantias e direitos fundamentais do cidadão de acesso à justiça e o direito de não ser obrigado a associar-se ou permanecer associado, haja vista que, em certos casos, as associações têm legitimidade para substituir o consumidor individual em juízo. ARAÚJO FILHO diz que “não seria lícito conceber a completa subversão de princípios elementares do Direito para assegurar às entidades associativas (lato sensu) o poder desmedido de subjugar a defesa dos direitos subjetivos de seus associados” [73], o que significaria o desrespeito a outras garantias previstas na própria Constituição, como a da livre atuação dos próprios indivíduos, titulares dos direitos, pertinente em casos de direitos individuais homogêneos, em defesa de seus bens ou de sua propriedade [74].
Mesmo se, por acaso, algum dia ocorrer a revogação da norma infraconstitucional (CDC), os direitos do consumidor, por atingirem patamar constitucional de cláusula pétrea, atingem o status de princípios e, como tais, devem ter prevalência num sopesamento com outras espécies de normas ou até mesmo de princípios divergentes. Nas palavras de Juarez FREITAS:
Recorre-se, em todas as hipóteses, expressa ou ocultamente, ao princípio da hierarquização, até mesmo ao lidar com princípios e regras de prioridade, tendo em vista as exigências teleológicas do sistema, que reclama – para além de relativismos niilistas – solução das controvérsias, de maneira a concretizar a máxima justiça possível em face da dialética e saudável coexistência dos princípios fundamentais. [75]
Há que se levar em conta, nesses casos interpretativos, a regra da proporcionalidade. Nesse sentido, a lição de Luís Virgílio Afonso da SILVA, de que “regras expressam deveres definitivos e são aplicadas por meio de subsunção, princípios expressam deveres prima facie, cujo conteúdo definitivo somente é fixado após sopesamento com princípios colidentes”, sendo estes últimos “mandamentos de otimização” [76].
Sob este prisma, a proporcionalidade visa, nas questões referentes ao dever de proteção do Estado ao consumidor, uma proibição de insuficiência que venha a ignorar a disparidade entre o consumidor e sua condição de vulnerável em face da tutela jurisdicional de interesses consumeristas. Necessária, portanto, a tutela coletiva de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos no sentido de dar força a um grupo organizado e legalmente constituído frente aos atos lesivos praticados em relações de consumo.
A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais tem “uma estrutura racionalmente definida, com subelementos independentes – a análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito – […] que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia da […] mera razoabilidade” [77]. Esta proporcionalidade pode ser entendida como integrante do ordenamento jurídico no art. 5º, § 2o da CF.
Em relação ao dever de proteção, este tem como destinatário apenas o Estado, detentor da tutela jurisdicional, no que CANARIS descreve como “eficácia externa mediata”:
Por outro lado, fica simultaneamente claro por que isso afeta outros cidadãos e porque os direitos fundamentais produzem efeitos também nas relações interprivadas, e isto, de certo modo, por via oblíqua: precisamente porque o Estado ou o ordenamento jurídico estão, em princípio, obrigados a proteger um cidadão contra o outro também nas relações entre si. [78]
As relações de consumo, além de terem caráter individual ou coletivo lato sensu, podem requerer a tutela jurisdicional contra atos praticados pelo Poder Público (consumidor de serviço público) ou por fornecedores de bens e serviços de caráter privado. O consumidor tem previsto no texto legal a sua vulnerabilidade, mas a sua hipossuficiência deve ser reconhecida em juízo, em face do não conhecimento técnico ou meramente cultural a respeito da relação de consumo invocada.
Por ser sempre vulnerável, a defesa dos interesses do consumidor em juízo deve ser ampliada ao máximo, a fim de não existirem disparidades injustas no sopesamento entre regras e princípios que regerão o decisum. A inversão do ônus da prova nos processos que versem sobre relações de consumo é fruto direto da responsabilidade objetiva do fornecedor, seja este privado ou o próprio Estado, e, juntamente com a regra da proporcionalidade, deve ser aplicado nas decisões jurídicas a fim de garantir: o princípio da lealdade processual; do interesse público e a correlata subordinação das ações estatais ao princípio da dignidade da pessoa humana; da proporcionalidade e da adequação axiológica e da simultânea vedação de excesso e de inoperância, ou omissões causadoras de sacrifícios desnecessários e inadequados; da segurança jurídica; da legitimidade; da ampla e irrestrita tutela jurisdicional a fim de resguardar direitos lesados ou ameaçados de lesão. [79]
CONCLUSÃO
Os direitos do consumidor sempre tiveram sua tutela generalizada no ordenamento jurídico brasileiro anterior ao advento do CDC, em 1990. Princípios reguladores do direito privado, como a pacta sunt servanda e o do foro do ato jurídico ser competente para solucionar litígios dele decorrentes passaram a ser preteridos em relação a deveres mais eficazes de proteção por parte do Estado, num reconhecimento da desigualdade existente nas relações de consumo e da vulnerabilidade do consumidor frente aos fornecedores de bens e serviços.
Tratar desigualmente os desiguais é a regra do CDC, que prevê a condição de vulnerável e hipossuficiente do consumidor, regendo, inclusive, atos procedimentais em favor deste quando postulante em juízo. Dentre esses atos, a fim de ampliar ainda mais as garantias de defesa dos interesses do consumidor, o CDC permitiu a tutela coletiva, antes somente regulada pelas leis da Ação Popular e da Ação Civil Pública, definindo, pela primeira vez de maneira precisa, a distinção entre direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
O CDC prevê a existência de interesses difusos quando pertencerem a um grupo indeterminável, forem indivisíveis e tiverem origem em uma mesma situação de fato, como, por exemplo, os espectadores de uma mesma propaganda enganosa. Já os interesses coletivos são aqueles pertencentes a um grupo determinável, mas com interesses indivisíveis, e frutos de uma relação jurídica comum, como, por exemplo, pessoas que assinam o contrato de adesão idêntico e buscam a desconstituição em juízo de uma cláusula abusiva. Por fim, os interesses individuais homogêneos são descritos no CDC como pertencentes a um grupo determinável, sendo de caráter divisível e com uma origem comum, como, por exemplo, pessoas que compram produtos defeituosos em razão de uma mesma propaganda enganosa.
O procedimento judicial descrito no CDC alterou, inclusive, o texto original da LACP, mas a jurisprudência e a doutrina entendem que ambos se complementam, numa relação de subsidiariedade e interdependência. Assim, se no CDC está previsto somente a defesa em juízo dos interesses individuais homogêneos, e na LACP os interesses difusos e coletivos, ambos regem a ações que versem sobre quaisquer tipos de interesses coletivos lato sensu decorrentes de relação de consumo subsidiariamente.
Nesses casos, o grupo legitimado para propor a ação deve ser legalmente constituído ou o ente público legitimado, como o MP, por exemplo, não sendo possível ao cidadão propor pessoalmente a ação em nome coletivo, por ilegitimatio ad causam. As ações civis públicas ou as ações coletivas têm por escopo a tutela de interesses coletivos em juízo, visando uma condenação da ré em indenizar, fazer ou deixar de fazer algo, quando procedente, em caráter genérico. Nos casos de interesses individuais homogêneos, cada lesado deverá propor liquidação de sentença e posterior execução individualmente a fim de garantir seu direito pessoal.
A Ação Popular legitima o cidadão a propor a ação que versará sobre a tutela de direitos coletivos em juízo. Porém, não é cabível para direitos individuais homogêneos ou condenação a indenizar, servindo, somente, para desconstituir atos administrativos que venham a lesar interesses difusos e coletivos. Razão essa (interesse público) pela qual não são cobradas custas ou ônus sucumbenciais ao autor, exceto se comprovada a sua litigância de má-fé.
Os direitos coletivos passaram a ter maior cobertura por parte do poder do Estado com o advento do CDC, protegendo, assim, os princípios que regem os indivíduos singular ou coletivamente, e que são cláusulas pétreas da CF. Um maior controle nas políticas de consumo e na ordem financeira estão nas mãos dos cidadãos, que têm o poder de invocar o Estado para proteger seus interesses frente às ameaças oriundas das relações mercantis da sociedade capitalista.
John RAWLS, ao descrever os princípios da justiça, diz que “todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases da auto-estima – devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos” [80], e essa máxima encontra guarida na busca da mais ampla tutela aos interesses do vulnerável consumidor.
REFERÊNCIAS
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Notas
01CDC – Lei n. 8.078/1990.
02LACP – Lei n. 7.347/1985.
03LAP – Lei n. 4.717/1965.
04MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 16a edição, São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 43/44.
05id., p. 44, grifo do autor.
06art. 81, caput.
07ANDRADE, José Carlos Vieria de. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares, in SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 279.
08op. cit., p. 46.
09SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9a ed., São Paulo: Malheiros, 1994, p. 404.
10Assunto que será tratado no item 2.1.1 a seguir.
11op. cit., p. 48.
12O qual será objeto do item 1.3.
13art. 37, § 1º do CDC.
14§ 2º do mesmo art..
15id., p. 147.
16IP: abreviação de internet protocol, é condição necessária para que a pessoa seja detentora de direitos sobre um site (página na internet) ou até mesmo um e-mail. No Brasil, o protocolo de IP é controlado pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), e corresponde a um número que, para ser regularmente registrado e ativado, deve ser parte de um cruzamento de dados com o CPF ou CNPJ do usuário, seu login (nome de registro) e senha.
17PECK, Patrícia. Direito digital. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 255.
18id., p. 261.
19art. 81, parágrafo único, II.
20MAZZILLI, op. cit., p. 50, grifo do autor.
21art. 81, parágrafo único, III do CDC.
22id., p. 51.
23GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action of damages à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade,in MILARÉ, Édis (coord.). Ação Civil Pública, Lei n. 7.347/1985 – 15 anos. 2a ed., São Paulo: RT, 2002, p. 31, aspas no original.
24THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor, a busca de um ponto de equilíbrio entre as garantias do Código de Defesa do Consumidor e os princípios gerais do Direito Civil e do Direito Processual Civil. 4a ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 120.
25id., ibid.
26THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, vol. I. Teoria geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 30a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 58.
27art. 267, VI do CPC.
28nesse sentido: THEODORO JÚNIOR, Curso…; MAZZILLI, op. cit..
29CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil, vol. I. Campinas: Servanda, 1999, p. 79.
30nesse sentido: THEODORO JÚNIOR, Curso…; MAZZILLI, op. cit..
31ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro: Forense, 2000, pp. 103/104, aspas no original.
32cfe. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos, conceito e legitimação para agir. São Paulo: RT, 2001, e MAZZILLI, op. cit.
33op. cit., p. 58.
34MAZZILLI, op. cit., p. 57.
35art. 91.
36descritos nos itens 1.1 e 1.2 desde artigo.
37art. 82.
38art. 104 do CDC.
39THEODORO JÚNIOR. Direito do consumidor…, p. 120, grifo do autor.
40art. 5o, XXI.
41art. 5o, XX da CF.
42id., p. 124.
43op. cit., pp. 120/121.
44art. 103, I.
45art. 103, II.
46art. 103, § 1º.
47art. 103, III.
48art. 103, § 2º.
49art. 1º da LAP.
50Súmula 365 do STF.
51art. 6º.
52RJTJSP 93/234.
53FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3a ed., São Paulo: Malheiros, 2004, pp. 107/109.
54Nesse sentido: STJ-154518; STJ-136964
55art. 5º, LXXIII da CF.
56CPC, art. 267, VI.
57FREITAS, Juarez. op. cit., p. 110.
58MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Propostas para a reformulação da Lei que criou o Fundo de Reparação de Interesses Difusos Lesados. in MILARÉ, Édis (coord.), op. cit., p. 809.
59FREITAS, Juarez. op. cit., p. 136.
60art. 81 a 104 do CDC.
61art. 3º da LACP.
62procedimento já descrito no item 2.1 supra.
63op. cit., p. 174.
64art. 104.
65ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. op. cit., p. 174.
66op. cit., p. 160.
67art. 5º, XXXII.
68art. 170, V.
69SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 238.
70SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5a ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 58.
71art. 60, § 4º, IV da CF.
72op. cit., p. 675.
73op. cit., p. 103.
74art. 5º, XXII da CF.
75FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 4a ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 145.
76SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável.in revista RT/Fasc. Civ., v. 798, ano 91, abril de 2002, p. 25.
77id., p. 30.
78CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha, in SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição…, p. 238.
79nesse sentido: FREITAS, Juarez. O controle…
80RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 66.